Imagem: Mark Rademaker/Holland Space Yards
A Teoria da Relatividade Geral de Albert Einstein revolucionou a física porque conseguiu descrever através de conceitos e fórmulas o como o espaço-tempo se comporta ante a gravidade — ele é distorcido e leva a matéria a se movimentar de acordo com essa distorção. Isso significa que, teoricamente, se pudermos manipular a gravidade a nosso bel-prazer, conseguiremos controlar nosso próprio movimento no espaço.
Isso abriu novos campos da ciência e permitiu ideias como a dobra espacial, uma proposta bastante excêntrica, mas possível, na teoria. Entretanto, há muitos problemas para serem resolvidos antes de tentarmos criar um motor de dobra espacial para viajar para qualquer canto do universo, o que deixa esse sonho um pouco mais distante da nossa realidade. Entretanto, um novo artigo parece ter resolvido muitos desses problemas, o que levou a comunidade científica a novos debates — e várias especulações.
O conceito de dobra espacial não é novo. Muitos já ouviram falar sobre ela em obras de ficção científica como Star Trek, mas, normalmente, nessas histórias trata-se de uma espécie de motor que permite à nave espacial uma viagem em velocidade superior à da luz. Essa não é exatamente a proposta da dobra espacial da vida real — ao menos não desde 1994, quando o físico Miguel Alcubierre propôs uma tecnologia que permitiria criar uma “bolha” no espaço-tempo. Essa bolha poderia criar uma espécie de ponte entre dois pontos do espaço.
Em seu novo artigo, os físicos Alexey Bobrick e Gianni Martire conseguiram desmistificar boa parte da tecnologia de dobra espacial. Por outro lado, o trabalho reforça que a viagem a destinos anos-luz de distância da Terra ainda continuará fora do nosso alcance, mas uma tecnologia de dobra espacial, caso venha a existir algum dia, pode ter aplicações pra lá de interessantes além das viagens espaciais, como veremos mais adiante.
Os problemas da viagem interestelar
Ilustração mostra como o espaço-tempo é compactado à frente da nave de dobra espacial e expandido atrás, fazendo com que a nave percorra maiores distâncias sem precisar viajar à velocidade da luz (Imagem: Reprodução/Anderson Institute of Technology)
A relatividade geral impõe restrições severas às viagens interestelares. Uma delas é a mais óbvia: nada pode ser acelerado a velocidades acima à da luz, que é cerca de 300.000 km/s. Mesmo que pudéssemos viajar nessa velocidade, ainda levaríamos muito tempo para chegar a outras estrelas e seus respectivos sistemas planetários. Ou seja, viagens interestelares são tão difíceis que não basta superar o limite de velocidade do tráfego cósmico — é preciso burlar as condições das rodovias.
Outro problema é que o tempo dentro de uma espaçonave viajando perto da velocidade da luz passaria mais devagar em relação ao tempo que experimentamos aqui na Terra. Talvez você já tenha se deparado com esse problema no filme Interestelar (2014). Na obra de Christopher Nolan, o tempo que os astronautas passam nos planetas localizados perto do buraco negro Gargantua passa muito mais devagar que o tempo na Terra, por isso cada minuto de missão nesses planetas era valioso para os que desejavam voltar para suas respectivas famílias.
Em outras palavras, se pudermos viajar em velocidade próxima à da luz, chegaríamos a uma estrela que está a 150 anos-luz de distância (o que é muito perto, em comparação às outras estrelas que poderíamos querer visitar) durante o tempo de uma vida. O problema é que ao voltar à Terra, mais de 300 anos terão se passado por aqui. Esse é um dos principais dilemas de Interestelar, com a diferença de que essa discrepância na passagem de tempo acontece porque, perto de um buraco negro, os planetas orbitam em velocidade muito maior que a Terra.
Como funciona a dobra espacial?
Em 1994, Alcubierre trouxe um novo conceito de viagem espacial que resolve esses problemas. Ele argumentou que a matemática da relatividade geral permite "bolhas de dobra", ou seja, regiões onde matéria e energia seriam organizadas de forma que possa literalmente dobrar o tecido do espaço-tempo. Imagine algo mais ou menos como um aspirador de pó: ele puxa ar à sua frente, contraindo (de certa forma) o espaço existente ali, e empurra ar para trás, expandindo (de certa forma) o espaço naquela região.
Antes de prosseguir nas nossas analogias, lembre-se que o espaço-tempo não é comparável à matéria, ou a qualquer outra coisa com a qual estamos acostumados. Por isso, fazer analogias com papel, borracha e outros tipo de objetos pode não ajudar muito a entender a física real, mas ajuda a compreender as mecânicas e as limitações de modo simples, sem usarmos matemática avançada.
Voltando à analogia do aspirador de pó — vamos dar a ele algumas capacidades especiais de sobreviver dentro de uma piscina sem precisar de fios elétricos — está imerso em um lugar semelhante a um fluido. Ao puxar o fluido para si, ele estaria “dobrando” a matéria que forma o tal fluido, comprimindo-a, em vez de simplesmente sugando-a para dentro. Atrás desse equipamento, o fluido não só é expelido, como também é expandido. O resultado é que este super aspirador se locomoveria dentro da piscina de fluido em velocidade equivalente à força com que realiza essa dobra. Quanto mais energia ele tiver para realizar esse processo, mais rápido ele navega.
Uma analogia mais famosa é a de uma bola de boliche sobre um tapete de borracha. Ela certamente vai criar uma deformação nesse tapete, um efeito semelhante à gravidade — gravidade nada mais é do que a distorção do espaço-tempo ante a presença de matéria. Agora, imagine que há uma xícara do outro lado do tapete, e você quer levá-la até a bola de boliche em tempo recorde. A solução mais simples é puxar o tapete entre os dois objetos, fazendo com que eles se aproximem sem que eles tenham que se mover sobre o tapete — eles se moveram apenas um em relação ao outro.
Ao contrário do que a analogia faz parecer, uma nave de dobra espacial não arrasta seu destino em sua direção, mas contrai o espaço-tempo para tornar seu caminho mais curto. Há menos tapete entre a xícara e a bola de boliche quando você liga o motor da nave, mas o espaço entre os objetos continua o mesmo: o tapete (tente não pensar no espaço além do tapete, pois esse tapete representa o espaço do universo como um todo). Essa sugestão é difícil de entender intuitivamente porque é complicado pensar no espaço-tempo como uma espécie de malha ou piscina de fluido, mas há uma matemática altamente rigorosa por trás do conceito de Alcubierre.
Também há alguns problemas. Por exemplo, Alcubierre mostrou que para criar algo assim, seria necessário algo chamado “energia negativa”, que ainda não foi descoberta pela ciência no mundo real — existe apenas no mundo das hipóteses. Na própria relatividade geral, toda a energia é maior que zero, em todos os momentos e lugares onde procurarmos no universo, e é justamente por isso que toda a energia está ligada à massa, conforme Einstein mostrou na equação E=mc2. Isso tudo significa que, se existir, a energia escura deve necessariamente estar ligada a uma massa negativa. Como se já não estivesse difícil o bastante, o dispositivo de Alcubierre exigiria enormes quantidades dessa energia excêntrica.
Algumas soluções e mais problemas
É aí que entra o trabalho de Bobrick e Martire. Eles não apenas simplificaram o método para a compreensão dos conceitos de dobra espacial, como mostraram como pode ser o dispositivo capaz de criar tal dobra. Para resumir, eles mostram que qualquer mecanismo de dobra espacial deve ser como uma “casca” de matéria em constante estado de movimento, dentro da qual há uma região plana do espaço-tempo — uma região plana é como o tapete de borracha sem nenhum objeto por cima, ou seja, sem a bola de boliche criando distorções.
Em outras palavras, dentro dessa casca não haveria nada criando campo gravitacional no espaço-tempo. Isso significa que a energia ali dentro modificaria as propriedades da região do espaço-tempo. Parece confuso, mas isso não é muito diferente de um carro. O automóvel também é uma “concha” de energia (na forma de matéria) que envolve uma região plana do espaço-tempo. A diferença é que no dispositivo de dobra espacial, o tempo pode sofrer o indesejado efeito que vemos no filme Interestelar.
Usando uma descrição simples, Bobrick e Martire demonstram um método para usar as equações da relatividade geral para encontrar espaços-tempos que permitem certas configurações de matéria e energia que atuariam como bolhas de dobra. Essa é uma solução matemática para encontrar e classificar tecnologias de dobra, o que já é um grande avanço. O artigo também consegue resolver o problema energia negativa, mostrando que um impulso de dobra pode ser feito de energia positiva ou de uma mistura entre energia negativa e positiva.
Não que isso torne a coisa toda possível através da nossa ciência atual. Segundo algumas estimativas, as várias propostas de dobra espacial que vieram depois de Alcubierre exigem toda a energia do universo conhecido — às vezes um pouco menos. Mesmo que Bobrick e Martire tenham mostrado uma matemática que facilita as coisas, ainda seria necessária uma quantidade imensa de energia. Se eles estiverem certos, um dispositivo de dobra espacial como qualquer outro objeto em movimento, o que nos coloca sujeitos às leis de limite de velocidade do trânsito universal imposto pela relatividade geral. Além disso, precisaria de um sistema de propulsão convencional para acelerar. Mais ou menos como nosso aspirador de pó bizarro.
A boa notícia é que Bobrick e Martire mostram que há alguma chance de que determinadas propostas de dispositivos de dobra possam viajar mais rápido que a luz. A má notícia é que isso só seria possível se eles forem criadas já viajando nessa velocidade. Não ajuda muito, mas fornece restrições que podem ser muito úteis para quem trabalha ativamente na busca pela criação do primeiro drive de dobra espacial — e sim, há muitos cientistas sérios nisso, incluindo alguns departamentos da própria NASA.
Utilidades incríveis da dobra espacial
Ilustração de um astronauta viajando em uma nave à velocidade da luz, uma ideia que fica cada vez mais distante à medida que as pesquisas sobre dobra espacial avançam (Imagem: Reprodução/NASA)
Bem, as notícias não são muito animadoras para os entusiastas da viagem interestelar, mas prometemos que o novo artigo resolveria alguns problemas e que poderia usar a dobra espacial para outras aplicações muito úteis que não sejam as tão sonhadas visitas a outros sistemas planetários. Mas, de fato, o tipo de veículo de dobra espacial demostrado matematicamente no trabalho de Bobrick e Martire traz algumas aplicações interessantes.
É que esse dispositivo poderia funcionar não exatamente como um veículo, mas como uma espécie de cápsula de tempo. Lembre-se que a proposta é criar uma “casca” onde o espaço-tempo é comprimido ou distorcido na parte de dentro, o que resultaria em uma aceleração ou desaceleração do tempo ali dentro em relação ao tempo que experimentamos na Terra. Em outras palavras, se colocássemos algo lá, poderíamos resolver muitos problemas da ciência atual.
Uma pessoa com uma doença terminal e sem cura poderia ser colocada dentro de tal dispositivo, onde o tempo passaria mais devagar. Se o paciente sair dali após poucos anos, a Terra já terá passado por mais de um século, e talvez uma cura já tenha sido encontrada. Outra possibilidade é colocar uma plantação dentro da dobra espacial por uma noite, só que com o tempo acelerado. Alguns dias se passarão para nós, enquanto as plantas passaram por semanas ou meses e já estão produzindo frutos. Também nos permitiria algo como a Sala do Tempo, da animação japonesa Dragon Ball, na qual os heróis treinam por apenas 1 dia enquanto um ano se passa na Terra.
Existem possibilidades ainda mais bizarras, como girar o espaço-tempo para produzir uma bateria capaz de armazenar grandes quantidades de energia. Todas essas ideias podem não fazer muito sentido quando não temos acesso a toda a matemática envolvida, mas o novo artigo sem dúvida dará aos físicos teóricos material para muito debate. Embora viagens mais rápido que a luz continuem sendo um sonho distante, a tecnologia de dobra nessa abordagem pode revolucionária por si só.
Fonte: The Conversation